Cena do filme Anjos do Sol (2006) ASPECTOS GERAIS (CONCEITOS)
Antes de tudo, deve ser ressaltado o uso equivocado da expressão “crime de pedofilia ”. Diariamente a mídia apresenta alertas com frases como “pedofilia é crime ”: tecnicamente, pedofilia não é crime. Isso porque a palavra pedofilia refere-se a uma condição psicológica ou um transtorno de preferência sexual, como definido abaixo:
“A pedofilia é considerada por especialistas como um transtorno de preferência sexual, também conhecido por parafilias. O agente busca a satisfação de seus desejos sexuais por meios impróprios. No caso do pedófilo, usando de crianças ou adolescentes. Não existe um consenso quanto ao modo de atuação do pedófilo, o que dificulta sua identificação e a conseqüente prevenção do crime sexual. ” [1]
Pode parecer preciosismo a referência aqui feita, mas não é. Há que se diferenciar um estado ou transtorno psicológico de um crime. Há que se diferenciar, também, um conceito das ciências médicas ou psicológicas e conceitos definidores de tipos penais, ou seja, descrições de comportamentos pela lei criando crimes. Enquanto o primeiro trata ou disciplina temas referentes a aspectos internos do indivíduo, o segundo apenas pode disciplinar comportamentos externos violadores de direitos de outros. Sobre o segundo (o direito), falarei mais abaixo, agora apenas continuarei comentando alguns aspectos gerais do tema.
A origem do termo, como ressalta Jane Felipe [2]: “designava o amor de um adulto pelas crianças (do grego antigo paidophilos: pais = criança e phileo = amar)”. A palavra hoje tem outro sentido e é usada, como dito acima, para definir um comportamento inadequado socialmente, definido no Catálogo Internacional de Doenças (CID). Ali a pedofilia é considerada um transtorno de preferência sexual, uma parafilia (como explica a autora: para = desvio; filia = aquilo para que a pessoa é atraída). A definição é a seguinte:
Uma preferência sexual por crianças, usualmente de idade pré-puberal ou no início da puberdade. Alguns pedófilos são atraídos apenas por meninas, outros apenas por meninos e outros ainda estão interessados em ambos os sexos. A pedofilia raramente é identificada em mulheres. Contatos entre adultos e adolescentes sexualmente maduros são socialmente reprovados, sobretudo se os participantes são do mesmo sexo, mas não estão necessariamente associados à pedofilia. Um incidente isolado, especialmente se quem o comete é ele próprio um adolescente, não estabelece a presença da tendência persistente ou predominante requerida para o diagnóstico. Incluídos entre os pedófilos, entretanto, estão homens que mantêm uma preferência por parceiros sexuais adultos, mas que, por serem cronicamente frustrados em conseguir contatos apropriados, habitualmente voltam-se para crianças como substitutos. Homens que molestam sexualmente seus próprios filhos pré-púberes, ocasionalmente seduzem outras crianças também, mas em qualquer caso seu comportamento é indicativo de pedofilia. [3]
Nesse aspecto geral, então, não há um consenso quanto ao modo de atuação do pedófilo. Possível identificar apenas alguns pontos comuns ou conceituais: a pedofilia é a atracão sexual por crianças, envolve impulso sexual recorrente e intensa por crianças, persistindo por, no mínimo, seis meses. A estrutura da personalidade do pedófilo está classificada na linha das perversões. Difícil é, no entanto, traçar uma “fotografia nítida da sua personalidade”. O pedófilo pode ser qualquer pessoa. Na imensa maioria das vezes, o agente não se utiliza de meios violentos para satisfazer seus desejos. Ao contrário, revela-se carinhoso e paciente.[4]
Não quero e nem posso, por me faltar conhecimento na área, explicar os conceitos referidos. A tentativa é apenas a de alocar corretamente os conceitos para realizar a análise do aspecto penal das condutas.
Cartaz da Campanha Faça Bonito - Proteja nossas crianças e adolescentes
ALGUNS DADOS
Dados retirados da literatura sobre o assunto:
- cerca de 90% da violência sexual contra meninas é praticado pelo pai ou padrasto.
- 73% dos casos de violência tem vítimas do sexo feminino.
- 90% dos abusos não são detectados.
- 80% dos abusadores são homens. Raramente é identificada em mulheres.
- Estão integrados no convívio social e são, com freqüência, casados.
- Em 85% dos casos conhece a vítima.
- Em 68% são os pais ou familiares.
- Em 80% dos casos não tem antecedentes penais.
- Em 58% dos casos se negam a receber tratamento
- Na maioria dos casos não padecem de transtornos psiquiátricos, possuem transtornos da personalidade e algumas vezes transtornos psicopáticos (7’5%).
- Em 90% dos casos tem capacidade para controlar seu próprio comportamento.
- Apresentam um elevado índice de reincidência
Nos Estados Unidos, pelo menos uma em cada quatro mulheres foi assaltada sexualmente antes de chegar aos 18 anos. Garotos também foram vítimas. Um estudo recente mostrou que 30 a 46% de todas as crianças foram assaltadas sexualmente de alguma forma antes dos 18 anos.
Na Suíça, um estudo mostra que a violência sexual exercida contra crianças dentro de suas famílias representa 25% dos casos, enquanto 66% são exercidas por pessoas conhecidas das crianças, entre as quais as outras crianças, e 10% são por desconhecidos
Por meio de pesquisa realizada no município de São Paulo (em 1998), os casos denunciados aos órgãos públicos são raros. Apenas cerca de 6,5% das vítimas são do sexo masculino. Nos casos de incestos, 70% das vezes o autor do abuso foi o pai biológico e que esse tipo de agressão não ocorre apenas nas camadas menos favorecidas, mas que são freqüentes nas camadas sociais economicamente mais privilegiadas.
Em levantamento estatístico realizado no Brasil (2001), mostrou-se que 80% das vítimas de abuso sexual eram crianças e adolescentes do sexo feminino, sendo que em 75% dos casos relatados, o abusador era o pai ou padrasto.
Capa da Cartilha Educativa para a Campanha de Prevenção à Violência Sexual de Crianças e Adolescentes - Abuso sexual é o segundo tipo de agressão mais comum contra crianças brasileiras
- A maior parte das agressões ocorreram na residência da criança (64,5%).
- Em relação ao meio utilizado para agressão, a força corporal/espancamento foi o meio mais apontado (22,2%), atingindo mais meninos (23%) do que meninas (21,6%).
- Em 45,6% dos casos o provável autor da violência era do sexo masculino. Grande parte dos agressores são pais e outros familiares, ou alguém do convívio muito próximo da criança e do adolescente, como amigos e vizinhos.
DIREITO PENAL SEXUAL
O tratamento penal dado à matéria, hoje, toma contornos mais amplos e dissociados (ao menos assim deve ser) da moral. O título do Código Penal em que tratados os crimes sexuais é denominado de “Crimes Contra a Dignidade Sexual”, conceito que se distancia muito do antigo título “Crimes Contra os Costumes”. Enquanto esse último se relaciona com hábitos, comportamentos sexuais aceitáveis ou não e, assim, tendo grande conteúdo moral; o primeiro é uma decorrência da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito e se refere ao respeito, à honra, à liberdade e à autonomia do exercício da sexualidade. A dignidade sexual é, assim, parte da dignidade da pessoa humana. A opção pelo novo título (que indica o bem jurídico protegido) mostra a ampliação das esferas de autonomia e liberdade individuais, por um lado, e o aumento da tolerância entre os diversos grupos e formas de orientação sexual no convívio social, por outro. [6] A dignidade humana – e a sexual, aqui tratada – funciona então tanto como garantia negativa – ninguém não pode ser objeto de discriminações – e positiva – assegurado o pleno desenvolvimento das suas capacidades individuais.
O segundo capítulo do título do Código Penal acima referido é o “Dos Crimes Sexuais contra Vulneráveis”. Os critérios para definição do vulnerável no Código mudam de um artigo para outro, de um crime para outro. Interessa-nos aqui, especialmente, o vulnerável definido no caput do art. 217-A, justamente o crime de estupro de vulnerável. Ali é definido como tal o menor de 14 anos. A conduta criminosa descrita é a prática de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos.
Antes de entrar nas clássicas polêmicas do tema, um parênteses. Como tratado acima, há uma diferença entre o conceito de pedofilia e os crimes tipificados no Código. A pedofilia, como dito, não é um conceito penal. E, enquanto o pedófilo não age – não pratica qualquer conduta definida como crime – essa sua condição em nada interessa à lei. Isso porque o Direito Penal é regido pelo princípio da lesividade: para que haja crime, deve haver uma conduta que gere lesão ou ameaça de lesão de um bem jurídico de um outro sujeito. O princípio, então, serve a proibir a incriminação de condutas internas (cogitação), dentre outras funções. É quando age em função do desejo, então, que sua conduta se torna relevante, podendo se amoldar a diferentes tipos de crimes. O estupro de vulnerável é um deles e é o mais grave. O Estatuto da Criança e do Adolescente também traz alguns crimes dessa natureza, a exemplo dos artigos 240 a 241-E, que tratam do que pode ser vulgarmente chamado pornografia infantil. O tema, como disse, é bastante polêmico. E nem digo polêmico apenas pelo fato de se tratar do assunto sexualidade, mas também por isso. A polêmica vem de uma celeuma anterior à inclusão do conceito de vulnerabilidade.
Como a Renata Lima já explicou aqui quando da decisão do STJ que gerou enorme repercussão nacional e internacional, falava-se antes que o ato sexual praticado com menor de 14 anos era presumidamente um ato violento. Assim, aquele que praticasse tal conduta responderia pelo crime (de estupro ou de atentado violento ao pudor) ainda que não houvesse violência no caso concreto. Ocorre que muito se debateu sobre a natureza dessa presunção. Uma presunção é uma ficção e, nesse caso, é estabelecida contra o réu. Oscilava-se entre entendê-la absoluta e entendê-la relativa. A lei mudou e excluiu a referida expressão, criando novo crime, o chamado estupro de vulnerável. A intenção do legislador era fazer com que qualquer ato sexual praticado com um menor de 14 anos fosse considerado um ato criminoso. O ponto não estaria então na proteção da liberdade sexual e na análise da ausência ou não de consentimento, como ocorre com os demais casos de estupro, uma vez que a lei considera que estes não tem condições plenas de consentir livremente. A proteção estaria, principalmente, no ingresso precoce na vida sexual, na garantia do crescimento livre e equilibrado e de seu pleno desenvolvimento.
Mas não tem sido bem assim. Uma interessante pesquisa da jornalista Rosanne D’Agostino demonstra o que já havia sido dito aqui: a decisão do STJ não é única e nem é novidade. Muitos magistrados (juízes, desembargadores, ministros) têm entendido que também o conceito de vulnerabilidade deve ser relativizado e, como tal, deve ser analisado em cada caso concreto. Como bem demonstrou a pesquisa, essa espécie de interpretação apenas tem sido aplicada para os casos envolvendo adolescentes. Para os menores de 12 anos, o entendimento é, efetivamente, de que a condição de vulnerabilidade é absoluta. Já no caso dos adolescentes entre 12 e 14 é que são encontrados entendimentos diferentes. A pesquisa mostra, dentre outras coisas, que diversos magistrados entendem que a lei não pode nem estabelecer uma presunção (acaba sendo também uma presunção, ainda que não no sentido estrito da palavra) absoluta contra o réu, nem desconsiderar completamente o depoimento da vítima quando essa declara consentimento com o ato sexual.
Apesar da matéria falar que os “Magistrados, no entanto, continuam aplicando o entendimento antigo aos casos novos”, não se trata exatamente de aplicar o entendimento antigo a lei nova, mas de considerar que a nova lei não tem a capacidade de mudar referido entendimento, uma vez que ele se baseia tanto nas regras e princípios do Direito Penal, quanto no fato de que o processo penal deve analisar os casos sempre de modo atento à palavra da vítima, à realidade. Guilherme Nucci,citado na pesquisa, em um de seus livros diz que:
“A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade. Se durante anos debateu-se, no Brasil, o caráter da presunção de violência – se relativo ou absoluto -, sem consenso, a bem da verdade, não será a criação de novo tipo penal o elemento extraordinário a fechar as portas para a vida real”. [7]
Nas palavras de Tulio Vianna, entender o tema de modo absoluto é “um atentado à liberdade sexual de adolescentes e deficientes mentais brasileiros. Se um rapaz de 13 anos mantiver relação sexual com uma mulher maior de 18 anos (uma prostituta, por exemplo), ela poderá ser punida por estupro de vulnerável com pena mínima de 8 anos de prisão”. Este texto não visa incentivar a pedofilia. O que se quer trazer são delimitações de conceitos para, assim, dar tratamento adequado ao tema sem o apelo ao medo ou ao pânico moral costumeiramente criado em torno dele. Ao mesmo tempo, ao fazê-lo, vem na crença de que esclarecimento, conhecimento, informação, são sempre instrumentos fortes e necessários a que as vítimas de violência sexual possam ter devida proteção e espaço para relatar e denunciar os abusos de que são vítimas.
A pretensão foi a de fazer uma análise sobre posicionamentos judiciais, como revelados na pesquisa, sobre o tratamento penal do tema, aliada a uma pequena abordagem sobre o uso correto da nomenclatura.
De tudo, este texto quer mesmo ser informação e alerta.
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