A renúncia do Papa Bento XVI
surpreendeu o mundo. Independentemente da natureza das razões que podem ter
levado o Papa a essa decisão,
renunciar significa de algum modo
manifestar-se frágil, mas também mostrar-se humano. Essa dimensão humana muitas
vezes tem sido ocultada pela Igreja, quando esta se permite julgar a humanidade
em suas fraquezas. A renúncia do Papa, no entanto, no mínimo causa
perplexidade.
Uma instituição que se considera
toda poderosa a ponto de apresentar o Papa como “o representante de Deus na
Terra”, poderia aproveitar a oportunidade da renúncia para rever a concepção e
a prática de poder que exerce e projeta em seu trabalho pastoral e político. O
poder como serviço, conforme proposto na tradição cristã, foi esquecido. Ao contrário, a experiência vivenciada pelas/os fieis
católicas/os é a de um poder autoritário, esvaziado de compaixão e
misericórdia, de uma Igreja que se
acredita e se apresenta como a portadora de uma verdade única - a “Verdade”
-, apartando-se da condição humana e de
suas complexidades. A renúncia do Papa e tudo o que a motivou chama a Igreja a
pensar que, além da dimensão institucional, ela está composta por seres
humanos, com suas ambiguidades, grandezas e debilidades.
As palavras do Papa ao anunciar
sua decisão desvelam a profunda contradição de uma Igreja que não reconhece o
direito que as pessoas têm de recorrer à sua consciência para tomar decisões
sobre suas vidas. Afirmou ele: Após ter repetidamente examinado minha
consciência perante Deus, eu tive certeza de que minhas forças, devido à
avançada idade, não são mais apropriadas para o adequado exercício do
ministério de Pedro. O Papa usou um
recurso próprio da mais antiga tradição da Igreja para legitimar a inesperada renúncia: Decidiu movido por sua
consciência. Católicas pelo Direito de
Decidir tem reiterado insistentemente que as mulheres católicas podem,
sustentadas por sua fé, decidir diante de Deus e de suas consciências pela
interrupção de uma gravidez indesejada.
E, como mulheres católicas, nos
perguntamos: Por que não respeitar e reconhecer o direito de todas as pessoas a
fazer uso da sua consciência? Por que
não respeitar e reconhecer o
direito das mulheres quando elas decidem, como último recurso, pela interrupção
da gravidez, na busca de uma melhor vida tanto para elas como para a sociedade?
Por que não seguir o princípio da própria Igreja que afirma: Onde há dúvida, há
liberdade?
Infelizmente, a Igreja com que
temos convivido nos últimos anos tem sido aliada dos setores políticos e
religiosos mais conservadores que, em nome de um Deus todo poderoso, castigador, imprime medo
e condena tudo o que leve à autonomia e que seja resultado da liberdade de
consciência e do direito de decidir das pessoas. O Papa Bento XVI deixou claro
que, no seu pontificado, não permitiria revisão doutrinal nem pastoral sobre a
família, a indissolubilidade do casamento, o celibato sacerdotal, o sacerdócio
feminino, o divórcio, o direito das mulheres ao aborto e o casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Reafirmou a primazia da Igreja Católica como única
portadora do legado de Cristo. Criticou o Islã, recuperou a liturgia em latim
e, sem ter em conta a dura realidade da expansão da infecção da aids entre a
população africana, reafirmou a posição
da Igreja contra o uso dos
preservativos. A lista seria longa, se completa.
O Papa justificou sua renúncia
afirmando que lhe falta agora a vitalidade física e espiritual necessária para
continuar enfrentando os desafios que sua função requer. No entanto, como
apontam vários analistas, não podemos esquecer motivos menos nobres, menos
publicáveis: Disputas internas de poder. Correntes conservadoras ativas no
Vaticano lutam para continuar mantendo seus privilégios no campo doutrinal,
financeiro e pastoral, ainda que isto signifique ocultar, proteger e manter na
instituição sacerdotes e bispos pedófilos ou corruptos. Assim, é de se compreender que a crise por
que passa a Igreja católica atualmente exerça enorme pressão sobre o Papa, a
ponto de fazê-lo renunciar.
Infelizmente, não encontramos,
neste momento, na Igreja, sinais de
tempos novos, ares mais evangélicos e, por isso, a renúncia do Papa, pode ter pouco significado para as pessoas que
buscam uma verdadeira igreja seguidora de Jesus de Nazaré. Sinceramente nos
entristece que a decisão do Papa não tenha sido motivada pelo reconhecimento de
que a Igreja precisa de mudanças profundas na direção da realização dos valores
evangélicos de busca de justiça e solidariedade humanas.
À renuncia de Bento XVI se
seguirá um novo conclave. Um novo jogo de interesses já está se articulando e
os salões do Vaticano serão testemunhas da confluência de interesses alheios ao
verdadeiro espírito evangélico. A espera pela fumaça branca manterá os fiéis
rezando, os bispos e cardeais também rezarão, mas é muito triste que se
continue fazendo as pessoas de boa fé acreditar que a eleição do Papa é fruto
da ação do Espírito Santo.
No entanto, tudo poderia ser
diferente! A renúncia de Bento XVI deveria ser uma oportunidade inédita para
que a Igreja reconhecesse, denunciasse e atuasse de maneira firme para punir
exemplarmente os autores de milhares de abusos sexuais cometidos contra
crianças e mulheres, abusos ocorridos
nos últimos 50 anos nas suas
instituições e nas escolas
católicas do mundo. Seria uma chance de
resgatar a imagem de uma instituição hoje
envelhecida, desconectada com os tempos atuais e com o que pensam e
desejam seus fiéis.
Nós, de Católicas pelo Direito de
Decidir, esperamos que essa oportunidade não seja perdida. Ainda há tempo para se trocar a nefasta
prática da cúria romana de acumular riqueza, poder e corrupção por uma prática
ética e moral de serviço e opção pelos
pobres. Há tempo de a cúria voltar a sentir-se verdadeiramente parte do Povo de
Deus, retomando os rumos do Concilio Vaticano II. Assim, desejamos que ares
novos soprem com força e abram as portas e as janelas da Igreja Católica,
superando a misoginia e reconhecendo o pleno direito das mulheres no interior
da igreja, respondendo aos anseios das e dos católic@s do mundo de participar
de uma igreja democrática, sustentada pela liberdade de expressão, aberta e
disposta a escutar os questionamentos que o mundo traz e, principalmente,
disposta a reconhecer que, como o Papa,
as pessoas têm direito a fazer uso de sua consciência para tomar
decisões na sua vida.
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