quinta-feira, 28 de março de 2013

Domésticas: a luta continua


 

» CRISTIANO SIQUEIRA DE ABREU E LIMA
Juiz do Trabalho, diretor da Amatra 10 e professor universitário
Artigo publicado em  28/03/2013 no jornal Correio Braziliense
Em uma sociedade cujo princípio fundamental seja promover a dignidade da pessoa humana, a noção de desenvolvimento deve transcender a simples acumulação de riquezas. Deve reclamar verdadeira transformação social, em que são assegurados os legítimos meios necessários para a escolha individual e coletiva da vida que pretendemos viver e das liberdades que desejamos gozar. 
Nesse cenário, o trabalho, ao se revelar o mais importante elo de aproximação entre o desenvolvimento econômico e social, configura essencial instrumento do processo emancipatório das capacidades necessárias à satisfação dos direitos humanos. No entanto, apesar de ser importante porta de entrada no mercado de trabalho para milhares de brasileiros que se encontram em expressiva situação de vulnerabilidade, o trabalho doméstico tradicionalmente recebeu proteção jurídica inferior à concedida aos empregados em geral. 

A subvalorização do trabalho doméstico não tem apenas origens históricas na escravidão, no colonialismo e em outras formas de servidão, mas também culturais, alicerçadas na própria divisão sexual do trabalho, que destinou às mulheres afazeres privados ligados à limpeza da casa, preparo das refeições diárias, criação de filhos, entre outras atividades socialmente consideradas menos importantes. Não por acaso, o reconhecimento de direitos trabalhistas à categoria iniciou-se tardiamente e sempre de forma tímida e insuficiente. 

A Constituição da República de 1988, por exemplo, é considerada avanço na promoção de direitos humanos quando comparada ao padrão normativo anterior. Entretanto, quando excluiu os trabalhadores domésticos de boa parte dos direitos concedidos aos empregados comuns, estabeleceu injustificada discriminação normativa — talvez a mais significativa de todo texto constitucional.

Não existe (tampouco já existiu) qualquer razão jurídica para estabelecer diferenciação entre empregados domésticos e os demais empregados. A aprovação da PEC das Domésticas (PEC nº 66/2012) é medida, portanto, que, além de aproximar o Brasil dos padrões internacionais (Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho), corrige erro histórico ao estender à categoria os mesmos direitos constitucionais concedidos aos empregados em geral, favorecendo o projeto constitucional de desenvolvimento nacional em direção à construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária. 

Trata-se de uma vitória, não apenas das mulheres (94% dos trabalhadores domésticos são mulheres), dos negros (80% são negros) e de uma quase totalidade de trabalhadores menos favorecidos. Trata-se de uma conquista da sociedade brasileira que, por meio de seus representantes parlamentares, reconhece a necessidade de elevar o patamar civilizatório do trabalho doméstico, promovendo a dignidade e o exercício da cidadania aos que sempre estiveram à margem de uma vida econômica, social e política verdadeiramente livre.

Muitos argumentam que a PEC das Domésticas resultará em significativo desemprego, ao fundamento de que o orçamento familiar não suportará o aumento do custo advindo da concessão de novos direitos. Embora a preocupação seja natural, é possível questionar o argumento. Além da migração para outros setores do mercado de trabalho — processo já iniciado pelo incremento da qualificação profissional nos últimos anos —, a demanda por trabalhadores domésticos ainda existirá. É importante, por seu lado, tranquilizar os empregadores. 

Não haverá acréscimo imediato no custo mensal da contratação, pois boa parte dos novos direitos (despedida arbitrária, seguro-desemprego, FGTS, adicional noturno, salário-família, auxílio-creche, seguro contra acidentes de trabalho) dependerão de regulamentação posterior. Essa técnica legislativa é sujeita a críticas, pois a experiência tem demonstrado que, em muitos casos, direitos reconhecidos na Constituição deixam de ser aplicados em virtude da inação do Parlamento em regulamentá-los. De todo modo, ainda que o Congresso, em atitude coerente e louvável, regulamente os novos direitos com a brevidade que a matéria reclama, o custo mensal ordinário será acrescido, em princípio, apenas em 8% por mês em razão dos depósitos de FGTS e de 1% a 3% por mês decorrente do seguro de acidente de trabalho. 

É claro que, se for exigida jornada superior a 8 horas diárias (ou 44 semanais) ou trabalho entre as 5h e as 22h, haverá ainda o direito às horas extras e ao adicional noturno. Entretanto, com boa organização das rotinas de trabalho, o empregador pode evitar tais situações por meio do estabelecimento de regras claras sobre o início e o fim do expediente, bem como pela possibilidade de compensar o excesso da jornada de trabalho de um dia com a diminuição no outro, desde que o acordo seja feito por escrito.

A mais importante batalha pela valorização do trabalho doméstico foi vencida e merece ser comemorada por todos que valorizam e desejam uma sociedade mais solidária. A guerra, entretanto, ainda está longe de terminar e precisa dos bons combatentes para a integrar às fileiras pela luta por espaços emancipatórios destinados a fomentar capacidades de proteção e promoção de condições de trabalho decentes.
 

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